domingo, 29 de junho de 2008

Para meu amigo Nemer e nossa amiga Clarice


Meu Deus
dá-me a coragem
de ter bons amigos
trezentos e sessenta e cinco dias por ano
um dia de cada vez
todos os dias até pra sempre
.
Meu Deus
dá-me a paciência
de que eles necessitam
pra me tolerarem
em medida redobrada
para que, abundando em mim
eu possa repartí-la
se lhes faltar
.
Dá-me também conselhos
os mais sábios
e os mais loucos
pra que juntos aprendamos
a discernir entre uns e outros
.
Dá-nos paixões suficientes
projetos em boa conta
tristezas que não nos afoguem
poetas que nos entendam
e amores que não nos afastem
.
Dá-nos sobretudo
a capacidade
de trabalhar na manhã seguinte
de cara lavada
e alma também
.

Nova embalagem


Não posso mais parar de pensar. Fazê-lo seria um crime que eu só ousaria cometer se me amasse muito. Os assuntos se repetem, nesse nosso tempo. Mudam os rótulos. Em nova embalagem, ainda o mesmo produto. E o conteúdo é o nada. É o não ser. Queria que fosse a ausência, porque esta é ao menos palpável. Mas o que me dói os ouvidos é a não presença. Brilha, lampeja, some. E é o não ser, o nunca de modo algum ter sido, que me assobra dos sentidos os mais loucos. Sei que não há só cinco deles. Do muito que a medicina me deu - pois que sempre gostei de ler os rodapés das páginas - o melhor foram os sentidos.

Lotação


Escrevo rápido porque o metrô já chega
E ele não espera
Não espera ele
.
Escrevo só pra contar
que os gênios e os loucos
são os únicos que me
interessam
.
E que os loucos são só
gênios virados pra dentro

Aparecida, essa Dona


Contemplo a morte pelos olhos de uma senhora idosa. Tomo de empréstimo o olhar alheio, que o meu próprio não teria coragem. Faço-no em prosa, que não sou capaz ainda de abarcar a poesia da morte. As pálpebras de D. Aparecida se entreabrem pra me permitir ver o que me naturalmente é vetado, pois que vivo ainda. Não que tenha medo. Muito antes o contrário. É como se toda a humanidade temesse a praia, porque nela a terra acaba. Pelos olhos emprestados de D. Aparecida, a praia é onde o mar começa.
A filha de Dona Aparecida pergunta se é mesmo necessário ir ao Hospital. Bem se vê quão mal amada é a minha defunta. Dói-me agora por nossa filha, Aparecida, que nem na morte conheceu misericórdia. Em Aparecida não dói, porque a dor já se aposentou dela, nem à dor um morto tem mais direito nesses dias.
Preciso escrever rápido, antes que a enfermeira me feche os olhos. Antes que esse instante, as quinze horas e quinze minutos esgotem-se em si mesmas. Todos os últimos sessenta segundos da sua cidadania. O tempo entre o morrer e o declarar a morte. Poderia eu como médica alongar esse interlúdio. Não constatar o que é óbvio e o monitor mostra. Mas agora sou aparecida, nem sou mais eu. Percebo as pausas que inponho ao texto. Como se o entrecorte da respiração que causa o ponto fizesse o tempo passar mais lento. Pra ti, leitor. Sim, sei que também queres espiar pelos olhos dessa senhora. Ou será que tomastes os meus olhos, que estão vazios pois que uso os dela?
Pra Dona Aparecida, o tempo será para sempre quinze e quinze. Não há depois; o depois simplesmente não é. Agora que estás aqui, leitor, tomo força pra alcançar o minuto seguinte. Segure a minha mão. Não me deixes de modo nenhum voltar a mim.
Preciso confessar, porque já temos intimidade. A sacrossanta intimidade de quem toma o corpo de outro pelo prazer. A morte me fascina. A entrega última dos mártires me enche de inveja. Um delírio quase sensual, a dor e o prazer em si mesmos. Dolore ipsum. Nosce te ipsum. Não há fascínio na morte de agora. Pois que se não tivestes graça em viver menos ainda em morrer, aparecida.
Perdoe-me o leitor a frieza das minhas colocações. Mas se algo me restou de Brás Cubas é que na morte não há segredos, não há dignidade, não há remorso. Não há nada, só mesmo a morte.
E é ela que agora eu olho. Desprovida da cor, do gosto, do som. O único sentido que lhe sobra é mesmo o cheiro. E como nada há que ver, fecho os olhos, enfim. Os meus e os vossos. Acabou-se o conto.

Brasília


Hoje me chegou uma brisa
nova
Uma lufada
de alegria
do Planalto Central

Hoje o vento trouxe algo
do cheiro de Deus
do gosto da Índia
da música que se esconde
dentro de cada palavra
gutural

MSN


O meu querer é tão tênue
e o gostar tão frágil
que se despedaça ao mero
fechar de uma janela
apagar de um frase

A palavra não mais dita
constrói mil cacos
dos mil beijos
que me mandavas

E ainda nem sei
se o fingir amar é que me faz bem
ou se fingir também
faço ao amar

AGSLA


São só letras, as suas
iniciais
Como se marcadas estivessem
numa toalha
numa valise
num coração
ou numa ovelha negra
Espreitam
demarcando
sem entretanto elucidarem
Acusatório é
o teu acrônimo
delimita o que te pertence
sem comprometer contudo
a tua identidade

Clarabóia


Lá vai a Princesa Clara
com seu sorriso de pra sempre
com seus olhos de maresia
andando por entre as gentes
.
O mundo lhe pertence
soberana do que é seu
a boneca, o batom, o filme da cinderela
um copo de amendoins
e o resto do universo
.
Tem certezas infinitas:
mamãe é a mais doce
papai o mais forte
vovó é a mais louca
vovô Chico tinha uma fazenda
Ia Ia Iou

Diálogo


- Doutora, a Senhora também escreve?
- Só nas horas ocupadas.
Nas horas vagas eu trabalho.

Cinema


Tem gente que tenta
acertar o final do filme
e sempre erra

Tem gente que
sem tentar
acerta

Há os que simplesmente
assistem
sem se importar com o fim

E há os roteiristas

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Entenda

Não quero namorar pra que tenhas o dever de pensar só em mim. Isso é o que menos me importa. Quero namorar pra ter o direito de pensar só em você.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Incompleto


Ainda não estou pronta
Pra escrever este poema
Tenho a vontade
Sobram-me as palavras
Mas o motivo saiu a passear
Em outras pradarias
E disse que não volta pro jantar

Mãos


Escrever me leva

o latejar de sobre os ombros

para a ponta dos dedos

que encrespados pelo frio

abraçam uns aos outros

Pra você que furtou minha carteira


Você não entende, meu querido. Levastes a parte errada. Um sorriso que ilumina o dia, este ficou. Não tomastes a minha fé, no Deus cujas misericórdias se renovam a cada manhã. Meus amigos permaneceram guardados na minha memória. A alegria ainda está impregnada na minha alma. E na fuga levando o que não é teu, deixastes cair a tua dignidade.

Clínica de Ritmologia


Meu chefe assoprou a tristeza pra dentro do meu coração. Se eu não pudesse escrevê-la até que saísse pra fora, teria morrido de infelicidade.
Há aqueles que têm na dor o seu modo de ser. Respiram para que, doendo, sintam que vivem.

Jardim perene


Meu coração não tem cercas. Quero os amigos chegando pro chá da tarde, mesmo na madrugada. Quero um jardim que se aviste ao longe. Pra cada amor que vier, plantarei uma árvore. Serei uma pessoa então de folhadura perene.

Quase me tivestes. Mas quase ter é não ter nada, do mesmo modo que quase ganhar é perder, que quase acertar é errar, que quase esquecer é lembrar. E quase amar, meu querido, quase amar é só um quase, nem merece ponto final

Ser


Então estou aqui, sozinha. Eu no espelho comigo mesma. Nem a dor me quer fazer companhia. Quando tudo desmorona, quando o sonho vai embora, é onde estou. É a realidade crua que me apara. As arestas da minha alma recusam-se a assumir a curvilínea forma. O cinzel e o buril se partiram. Bonito isso, dizer que se partiu – é um quebrar que leva embora, um estragar que não tem volta. Fujo do assunto porque me espanta. E na verdade o assunto é só esse: o nada. O que você é quando não faz, quando não trabalha, quando não pertence. Quem sou quando simplesmente existo? Diria que sou médica, morena, divertida, bem-educada. Mas ainda que me aposentasse, que tingisse o cabelo, estivesse de mal-humor, ainda seria eu. Alguém que ri como se o mundo fosse inteiro um lugar onde a alegria impera, e a saudade de ser criança ainda não é nostalgia. Assim sei que estou, na maioria das vezes. Mas isso ainda não me é. Meu nome me determina, mas não me contém. Conheço o que quero ser. Entendo o que não sou. Mas o resto – ah!, todo o resto – isso sim é que é a maravilha da vida.

segunda-feira, 9 de junho de 2008


Talvez por seres tão grande, meu amor
ou por talvez por ser meu sentimento
tão proporcional
não cabe mais ninguém
nem em minha boca
nem em minha alma.

Família Mafra


Nostalgia é a pressa de algo que não pode mais existir. Saudade é quando ainda existe, mas os dedos não alcançam.