domingo, 29 de junho de 2008

Aparecida, essa Dona


Contemplo a morte pelos olhos de uma senhora idosa. Tomo de empréstimo o olhar alheio, que o meu próprio não teria coragem. Faço-no em prosa, que não sou capaz ainda de abarcar a poesia da morte. As pálpebras de D. Aparecida se entreabrem pra me permitir ver o que me naturalmente é vetado, pois que vivo ainda. Não que tenha medo. Muito antes o contrário. É como se toda a humanidade temesse a praia, porque nela a terra acaba. Pelos olhos emprestados de D. Aparecida, a praia é onde o mar começa.
A filha de Dona Aparecida pergunta se é mesmo necessário ir ao Hospital. Bem se vê quão mal amada é a minha defunta. Dói-me agora por nossa filha, Aparecida, que nem na morte conheceu misericórdia. Em Aparecida não dói, porque a dor já se aposentou dela, nem à dor um morto tem mais direito nesses dias.
Preciso escrever rápido, antes que a enfermeira me feche os olhos. Antes que esse instante, as quinze horas e quinze minutos esgotem-se em si mesmas. Todos os últimos sessenta segundos da sua cidadania. O tempo entre o morrer e o declarar a morte. Poderia eu como médica alongar esse interlúdio. Não constatar o que é óbvio e o monitor mostra. Mas agora sou aparecida, nem sou mais eu. Percebo as pausas que inponho ao texto. Como se o entrecorte da respiração que causa o ponto fizesse o tempo passar mais lento. Pra ti, leitor. Sim, sei que também queres espiar pelos olhos dessa senhora. Ou será que tomastes os meus olhos, que estão vazios pois que uso os dela?
Pra Dona Aparecida, o tempo será para sempre quinze e quinze. Não há depois; o depois simplesmente não é. Agora que estás aqui, leitor, tomo força pra alcançar o minuto seguinte. Segure a minha mão. Não me deixes de modo nenhum voltar a mim.
Preciso confessar, porque já temos intimidade. A sacrossanta intimidade de quem toma o corpo de outro pelo prazer. A morte me fascina. A entrega última dos mártires me enche de inveja. Um delírio quase sensual, a dor e o prazer em si mesmos. Dolore ipsum. Nosce te ipsum. Não há fascínio na morte de agora. Pois que se não tivestes graça em viver menos ainda em morrer, aparecida.
Perdoe-me o leitor a frieza das minhas colocações. Mas se algo me restou de Brás Cubas é que na morte não há segredos, não há dignidade, não há remorso. Não há nada, só mesmo a morte.
E é ela que agora eu olho. Desprovida da cor, do gosto, do som. O único sentido que lhe sobra é mesmo o cheiro. E como nada há que ver, fecho os olhos, enfim. Os meus e os vossos. Acabou-se o conto.

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